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Fazer um Filme

* retirado do livro “Fazer um Filme”, de Federico Fellini. Editado por Ceriblog.

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“Qual sua filosofia em relação aos filmes?”

Nunca sei como responder esta pergunta. Acho que faço filmes porque não sei fazer outra coisa, e me parece que tudo tenha acontecido rápido e de uma maneira muito espontânea, muito natural, o que favorece esta inevitabilidade. Já disse que nunca imaginei me tornar um diretor, mas da primeira vez que gritei “Luz! Câmera! Ação! Corta!”, pareceu-me ter sempre feito aquilo, não poderia fazer nada diferente. Aquilo era eu, e aquela era minha vida. E, assim, fazendo filmes, só me proponho a seguir esta inclinação natural, a contar histórias por intermédio do cinema, histórias que fazem parte da minha natureza e que gosto de narrar em uma inextricável mistura de sinceridade e de invenção, de vontade de chocar, de me confessar, me absolver, de um desejo despudorado de agradar, de interessar, de ser a moral, o profeta, a testemunha e o palhaço. Preciso de algum outro motivo?

Mas por que você quer saber dos filmes que quero fazer?

Nunca se deveria falar dos filmes! Antes de tudo porque, pela sua verdadeira natureza, um filme não pode ser descrito com palavras: seria como pretender explicar um quadro ou expressar com palavras uma partitura musical. (…) Há algum tempo li um esclarecedor ensaio de Neuman sobre a criatividade, ou melhor, sobre o “ser criativo”. Posso citá-lo assim, de um modo meio confuso e tosco? Bem, dizia mais ou menos assim: quem é, ou o que é, uma pessoa criativa? A pessoa criativa é aquela que se coloca entre os cânones consoladores, confortantes, da cultura consciente e inconsciente. O escuro. A noite. O fundo do mar. É esta vocação que forma o ser criativo. Ele mora, se coloca, vive nesta área, para operar uma transformação que é símbolo da própria vida; o valor desta aposta é a própria vida do criador, ou sua sanidade mental.

Sobre a Experiência

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“A gloriosa obra-prima do homem é viver como homem. Todas as outras coisas: reinar, enriquecer, construir, não passam de apêndices da vida, no máximo. Tenho prazer em observar qualquer grande general, que no campo de batalha é sempre atento às brechas do inimigo, também se entregar completamente aos prazeres de seu almoço e à conversa livre com os amigos próximos.

É próprio das pequenas almas, soterradas sob o peso dos negócios, não saber se desprender totalmente deles. Não ter sabedoria suficiente para largá-los e, só depois, retomá-los.

Como um dia escreveu Cícero:

“Ó bravos heróis, que com frequência suportam ao meu lado o pior, afogai por ora no vinho vossas preocupações; amanhã partiremos para o mar imenso””

Michel de Montaigne

VHS

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Para mim, era um momento quase religioso. O culto acontecia nas noites de sexta ou sábado, quando aquele garoto de óculos fundo de garrafa e cabelo cortado no estilo ‘papa capim’ se aventurava pela esburacada rua Cerro Corá, de mãos dadas com sua avó, pronto para entrar em um de seus lugares favoritos de todo o mundo.

Hoje, abandonada e parcialmente destruída – com pichações de símbolos anarquistas no mesmo lugar onde ficavam os pôsteres dos “Últimos Lançamentos” – a ‘World of Video’ já não faz jus ao seu nome. Antes, ela tinha cheiro de ar-condicionado e plástico novo, com prateleiras de ferro iluminadas por luzes brancas e um balcão cheio de balas ‘dentes de vampiro’, ou daquelas que coloriam a língua de roxo ou vermelho. Eu ficava passeando entre as fileiras, observando as capas das fitas VHS e pegando as que eu achava mais legais; este era o critério máximo na época, uma caixa ‘legal’ me bastava.

Depois de escolher minuciosamente, eu carregava uma montanha de fitas para um tio gordo e barbudo que ficava no caixa, sempre vestindo camiseta do Batman ou do Super-Homem: com um jeito de oráculo das minhas escolhas, ele olhava o que eu alugava e sempre soltava um palpite lacônico – para os filmes bons, balançava a cabeça e dizia “Esse é fera, meu!”, para os ruins, apenas resmungava um “hum”, limpando a garganta. Ele acertava na maioria das vezes.

E assim, sempre julgando o filme pela caixa, é que eu lembro de ter passado centenas de horas dos meus fins de semana em São Paulo comendo bolo de chocolate da padaria e assistindo clássicos como “Gremlins”, “Corra que A Polícia vem Aí” e “Bill e Ted: Uma Aventura Fantástica”. É, eu me esquecia de mim mesmo naquela pequena sala de TV do apartamento, que continua igual até os dias de hoje, vinte e poucos anos depois.

Eu já morava em Londrina na época, mas nunca morei perto do centro, e a tal da Delta Video era um sonho distante – ficava para além das montanhas do Jardim Quebéc. Depois que cresci um pouco, já pegava minha bicicleta ou pedia carona para meus pais para entrar naquele outro templo da mesma igreja; agora, os DVDs já tomavam o espaço das velhas fitas VHS e as plaquinhas de “Rebobine, por favor” já não faziam tanto sentido. Continuava sendo uma experiência meio mágica; nesta idade, eu já havia aprendido que as melhores coisas talvez estivessem escondidas nos cantos, longe da seção dos ‘Lançamentos’. Foi uma época fértil – “Indiana Jones”, “De Volta para o Futuro”, “Star Wars”, “Scarface”, a trilogia do “Godfather”, etc.

Admito que também alugava um ou outro filme de comédia romântica ou de terror sanguinolento para assistir com as menininhas do colégio (sim, garotas, ‘ver um filminho’ era minha armadilha preferida para ficar no escuro com vocês) mas já conseguia perceber que muitos desses filmes não serviam para mim. O que me interessava mesmo eram os salmos mais profundos, apócrifos meio esquecidos que a Delta escondia no seu acervo, raridades que pareciam dedicadas apenas aos fiéis mais fervorosos; lembro até hoje a impressão que me foi deixada pelos ‘Sete Samurais’ de Kurosawa. Porra. Como explicar aquilo?

Na semana passada, eu caminhei novamente pela calçada da extinta ‘World of Video’. Agora, aos olhos adultos daquele mesmo garoto, a locadora destruída parece um lugar pequeno, sem vida, sem luz. Igual ao Parthenon grego, ali só sobraram ruínas de um brilho do passado. Os antigos deuses já não cantam, amam e dançam por ali.

Talvez por isto que quando fiquei sabendo no final do ano passado que a Delta Video iria fechar suas portas, senti um negócio esquisito no peito. Pobres daqueles que não conseguem entender que uma video-locadora não é apenas um lugar para alugar filmes; uma locadora é o lugar onde as musas do Cinema se manifestam e te seguem com o canto dos olhos. Talvez, ali, naqueles corredores, você poderia se encontrar com algo que iria mudar sua vida definitivamente. Eu sei. Eu encontrei.

Aparentemente, a Delta perdeu a batalha contra uma imensidão de corredores claustrofóbicos, cheia de filminhos do pau-oco comprimidos em .avi, gravados em mídias de um real, vendidos desrespeitosamente dentro de sacolas de plástico e entregues por falsos profetas com mãos engorduradas por coxinhas amanhecidas. Três por cinco, eles dizem. Leva esse novo do ‘Transformer’, eles dizem.

Mas também existe outra coisa no ar. Uma religião que não precisa de templos ou dízimos. E a carta que postei em outro tópico (clique aqui para ler) pode dizer muito mais do que eu sobre o assunto.

Este texto, na verdade, é apenas minha singela homenagem aos pisos de granito de um espaço que fez tanto parte da minha vida. Deusa Delta, eu pensava que, talvez um dia, meu filme pudesse estar em suas prateleiras. Mas os tempos mudam. Impérios caem. Lojas fecham.

Apenas os sonhos permanecem.

Em nome do Scorsese,

Do Fellini,

e do Spielberg Santo,

Ação!

A Letter to My Daughter

* Carta de Martin Scorsese publicada no diário italiano L’espresso. Traduzido e editado por Ceriblog

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Querida Francesca,

Estou escrevendo esta carta para você sobre o futuro. Estou olhando para ele com as lentes de meu mundo. Pelas lentes do Cinema, que é o centro deste mundo.

Nos últimos anos, eu percebi que a ideia de Cinema com a qual eu cresci, que está nos filmes que eu te mostrei desde quando você era uma criança e que estava no auge quando comecei a fazer filmes, está acabando. Eu não estou falando dos filmes que já foram feitos. Estou falando sobre os filmes que ainda serão feitos.

Eu não quero parecer desesperançoso. Eu não estou escrevendo sob um espírito de derrota. Pelo contrário, eu acredito que o futuro será brilhante.

Nós sempre soubemos que filmes eram um negócio, e que a arte do Cinema só foi possível porque estava alinhada com condições de negócios. Nenhum cineasta que começou nos anos 60 ou 70 tinha alguma ilusão sobre isto. Nós sabíamos que teríamos que trabalhar duro para proteger aquilo que amávamos. Nós também sabíamos que, por causa disso, alguns períodos seriam bem difíceis. E eu acho que compreendemos, em algum nível, que nós talvez enfrentaríamos um tempo em que qualquer inconveniente ou elemento imprevisível no processo de fazer filmes seria minimizado, talvez até eliminado. E qual é o mais imprevisível elemento de todos? O Cinema. E as pessoas que fazem filmes.

Eu não quero repetir o que outras pessoas disseram ou escreveram antes de mim, sobre todas as mudanças nas condições do negócio, e eu olho com carinho para todas as exceções atuais no processo de fazer filmes – Wes Anderson, Richard Linklater, David Fincher, Alexander Payne, os Irmãos Coen, James Gray e Paul Thomas Anderson estão todos conseguindo com que suas ideias sejam realizadas, e Paul não apenas conseguiu gravar “O Mestre” em 70mm, mas também fez com que ele fosse exibido nos cinemas. Qualquer pessoa que se importe com o Cinema deve agradecê-lo por isto.

E eu também fico comovido com os artistas que continuam produzindo ao redor do mundo, na França, na Coréia do Sul, na Inglaterra, no Japão, na África. Está ficando cada vez mais difícil, mas eles ainda conseguem terminar seus filmes.

Mas eu não acho que estou sendo pessimista ao afirmar que a arte do Cinema e todo o negócio que envolve os filmes hoje se encontram em uma nova encruzilhada. O entretenimento audiovisual e tudo que compreendemos como sendo cinema – imagens que se movem concebidas por indivíduos – parecem que estão caminhando em diferentes direções. No futuro, você provavelmente vai assistir menos e menos daquilo que reconhecemos hoje como cinema nas grandes telas de multiplex e mais e mais disso em teatros menores, online e, acredito, em espaços e circunstâncias bem diferentes daquelas que estamos acostumados.

Então porque eu digo que o futuro é brilhante? Porquê na primeira vez na história desta forma de arte, filmes podem ser realmente feitos com pouco dinheiro. Ninguém conseguiria prever isto quando eu estava crescendo, e orçamentos extremamente pequenos sempre foram a exceção ao invés da regra. Agora, é o inverso. Você pode conseguir imagens lindas com câmeras de baixo custo. Você pode gravar o som. Você pode editar e corrigir as cores em sua própria casa. Tudo isto acontece.

Mesmo com toda a atenção voltada para a tecnologia e para os avanços que lideram a revolução de fazer filmes, existe uma coisa importante para sempre ser lembrada: as ferramentas não fazem um filme, você faz o filme. É libertador pegar uma câmera e começar a filmar e depois colocar tudo isto junto com Final Cut Pro. Fazer um filme – aquele que você precisa fazer – é algo diferente. Não existem atalhos para isto.

Se John Cassavetes, meu amigo e mentor, estivesse vivo hoje, ele certamente usaria todo o moderno equipamento que está disponível. Mas ele estaria dizendo àquilo que sempre disse – você precisa ser absolutamente dedicado ao seu trabalho, você precisa dar tudo o que têm dentro de si, e você precisa proteger aquela faísca, aquela conexão que te fez se interessar pelo filme desde o começo. Você precisa proteger isto com sua vida. No passado, porquê fazer filmes era tão absurdamente caro, nós precisávamos proteger isto contra a exaustão e os compromissos. No futuro, você precisa blindar sua criatividade contra outro desafio: contra a tentação de seguir ‘com a corrente’, e ter a coragem para permitir que o filme flua por si mesmo.

Este não é apenas uma questão sobre Cinema. Não existem atalhos em nada na vida. Eu não estou dizendo que tudo tem que ser difícil.

Estou dizendo que aquela faísca tem que ser sua voz – esta é sua luz, o seu ‘brilho interno’,  como os Quakers falam.

Ali está você. Ali está a verdade.

Com todo meu amor,

Seu pai,

2 de janeiro de 2014

Somniø

Eros e Psiquê 7

 

Acordei de uma só vez, escapando de um sonho que não me lembro bem. Demorei alguns segundos para entender aonde estava.

Ela dormia em meus braços, com olhos inchados de tanto chorar. Sorri para mim mesmo, beijando com cuidado as sardinhas de seu nariz, sem querer acordá-la. Adorava observar ela dormir igual uma criança, sempre dando pontapés e perdida dentro de seu próprio universo particular – um lugar que eu nunca conseguiria chegar.  “Lembre-se desta noite, pois ela é o começo de toda eternidade”.

Eram 6h05 e a luz opaca da manhã invadia as frestas da janela, iluminando o quarto.  O rosto dela colado no meu, suas pernas entrelaçadas com as minhas.

Como podia existir alguém  tão linda?

Senti um aperto triste no peito. Sabia que a areia escapava por entre nossos dedos e que, depois daquela noite, nada nunca mais seria igual. “Depois que te conheci, nada foi igual”, pensei,  quase em voz alta. Encarei o silêncio, respirando o clima daquele quarto abafado, com cervejas abandonadas pela metade em todos os cantos.

Sabia que, no fundo, era um grande idiota, engasgando com palavras que sempre quis dizer, inventando desculpas para minha própria incapacidade; acho que somos todos, de certa forma, incompletos. Náufragos de nós mesmos, por muitas vezes permanecemos submersos nos cantos desconhecidos de nossas próprias almas.

E quando ouvimos o sopro inebriante de Eros cochichando em nossos ouvidos e ressuscitando sentimentos adormecidos, entendemos por um instante o que é aquela insanidade poética chamada ‘amor’. Podemos sentir ela chegando, com ouvidos colados no chão, como se um imenso vagão de trem estivesse se aproximando e fosse, inevitavelmente, passar por cima de nossa pobre razão. Ah, a razão. O futuro. Os planos. Foda-se tudo isto.

Estiquei meu braço, alcançando o isqueiro e o maço de cigarros que estavam espalhados em cima da escrivaninha de madeira barata, já descascada pelo tempo.

Quem é ela?

Uma garota qualquer, uma coincidência feliz, um golpe de sorte, o amor da minha vida?

“Não quero voltar atrás”, decidi.

“Não existe mais volta”, respondi para mim mesmo.

Ela acordou.

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